Vi Jesus Cristo descer à terra.
Tornado outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva
e a arrancar flores para as deitar fora e a rir de modo a
ouvir-se longe.
Tinha fugido do céu.
No céu tinha que estar sempre sério
e vez em quando de se tornar outra vez homem
e subir para a cruz,
e estar sempre a morrer
Alberto Caeiro
Antigamente, ou: era uma vez; enfim, tudo que é festa com o
tempo acaba numa espécie de ruína da memória, perdida nos meandros informáticos
e que só o Google pode rever. A insistir num retorno à espontaneidade, uns
dizem que você não cresceu e outros que você já está gaga, na aparência e no
espírito, apesar de todo óleo de fígado de bacalhau que nossa mãe empurrou
goela abaixo, por culpa exclusiva do "seu" Scott.
Por mais estranho que pareça aos novos religiosos ou aos
velhos ateus, todos esperavam estar presentes à ceia de Páscoa ou ser um dos
escolhidos para a cerimonia da humildade: o lavapés. Aguardava-se a procissão
do morto, enquanto ecoava o lamento da Madalena que, no gesto repetido por
séculos, enxuga o rosto do Cristo, para sempre impresso no pano, e que botava
um baita medo nas crianças.
No sábado, a coisa apertava, lá pros lados da Rua do
Lavapés, no Glicério: a malhação do Judas adquiria contornos políticos e la se
iam paus e pedras no boneco; depois,
botava-se fogo no enforcado de palha, nas máscaras de políticos e, pasmem,
simbolicamente nos corruptos de então, cujas cinzas subiam aos céus nas volutas
de papel queimado que recheavam as roupas velhas, para, por fim, sumirem nas
sarjetas e nos esgotos. Lógico que os correligionários do Judas punham-se,
também, com paus e pedras, a defender seu líder ou a disputar seus despojos,
acabando-se num pega pra capar, igual à disputa pelos balões caídos das festas
juninas. Bons tempos aqueles em que os tumultos só começavam no sábado de
Aleluia, nada obstante terem os sociólogos e outros ólogos passado a admitir
que dali surgiria – como no império romano – o germe dos movimentos de rua,
contrários a qualquer espécie de ditadura ou imposição ideológica. Era uma
revolta em miniatura, misturando-se povo, operariado e outras classes numa
verdadeira orgia de caras-pintadas ou black blocs.
Depois da pajelança, aí sim, ou se ia para a cadeia ou
sentava-se à mesa para comer o bacalhau, fosse o de posta ou aquele raquítico,
com aparência de peixe desventrado; cadáver, que ficava pendurado na venda e o
português apregoava ser da Noruega – até o dia em que se admitiu que o do Porto
podia ser melhor.
Assim, enquanto alguns comiam a posta regada generosamente a
azeite, ovos, pimentões e azeitoninhas pretas portuguesas; outros lambiscavam
as raspas e chupavam as espinhas, fritando bolinhos, com o resto do resto do
óleo do Matarazzo, envolto em desproporcionais porções de batatas e salsinha.
Sempre para os mais afortunados o coelho trazia ovos da
Sonksen ou da Lacta, mais tarde da Kopenhagen, coelhos e galinhas de chocolate
ou então um imenso ovo de cujo interior saltavam brinquedos, bombons e outras
surpresas.
Não vale a pena aqui adiantar assuntos de Natal, mas a
Páscoa acabou sendo também outra espécie de mercado de trocas, enquanto as
crianças – raramente – podem acordar no Domingo para procurar os ovos que o
coelho deixou espalhados pelo apartamento, pelo jardim ou pelo gramado do
sítio. Felizes estes que ainda perseguem alguma espécie de sonho e cuja recompensa
é o ovinho de chocolate.
Boa Páscoa, a todos, mas principalmente às crianças que
ainda acreditam no coelho e no afeto dos pais, avós ou responsáveis.
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Caetano Lagrasta é Consultor Jurídico e Jornalista.
Autor de livros de contos, poemas e poemas infantis.
Articulista do Projeto Tempestade Urbana
Colaborador do Boca a Penas
e mantém o site www.caetanolagrasta.com
Poucas vezes vi a Páscoa tão bem proseada, Caetano. Seu texto reúne informações interessantes, pitorescas, irônicas e sensíveis para nos fazer refletir sobre uma data que, assim como o Natal, parece ter virado um mercado de trocas, como você mencionou com toda razão. Parabéns pelo texto que me arrebatou e imagino que a outros leitores do BAP. Obrigada. Abraços e uma Páscoa poética! ;)
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